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terça-feira, 7 de agosto de 2012

ACÓRDÃO. Retificação de registro civil. Inclusão do nome da genitora. Adoção unilateral pelo pai biológico. Filhos havidos fora do casamento. Anos 60 do século passado. Direito ao nome da mãe. Filho adulterino. Dever de fidelidade conjugal.

Este acórdão, da lavra do Desembargador-Relator Dr. A.C.Mathias Coltro, rememora um período em que os filhos havidos fora do casamento, chamados adulterinos, eram alijados do nome do pai ou da mãe, posto que o homem casado não poderia reconhecer como seus os filhos frutos de adultério, em conjunto com a adúltera.
Página virada com a Constituição de 1988, traz a decisão o contraponto com a nova norma vigente, trazendo o que era e o que passou a ser e os percalços por que passaram aqueles que a lei excluía, em função do "pecado" dos pais.
Boa leitura!


TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PODER JUDICIÁRIO
São Paulo
Registro: 2012.0000328807
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos do Apelação nº 0016557-
50.2011.8.26.0625, da Comarca de Taubaté, em que são apelantes MATP e EHTA
, é apelado JUÍZO DA COMARCA.
ACORDAM, em 5ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de
Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: "Deram provimento ao recurso,
com observação, V.U. Sustentou oralmente o Dr. Vitor Massaru Takayama.", de
conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores
JAMES SIANO (Presidente sem voto), ERICKSON GAVAZZA MARQUES E J.L.
MÔNACO DA SILVA.
São Paulo, 27 de junho de 2012.
A.C.MATHIAS COLTRO
RELATOR

APELADO: JUÍZO DA COMARCA
COMARCA: TAUBATÉ
VOTO Nº
5ª Câmara – Seção de Direito Privado
Apelação nº 0016557-50.2011.8.26.0625 Voto nº 21981
Comarca: Taubaté (1ª Vara Cível)
Recorrente(s): Maria Cristina de Toledo Pardinho e outro
Recorrido(s): Juízo da Comarca
Natureza da ação: Retificação de Registro
Ementa: Retificação de registro civil - Pretendida a
retificação nas certidões de nascimento e casamento das
requerentes, a fim de se incluir o nome de sua genitora,
suprimido dos assentos registrários das demandantes
quando da adoção unilateral realizada pelo pai biológico,
no idos dos anos 60 do século passado
Reconhecimento de filhos havidos fora do casamento, na época, que
pressupunha a dissolução da sociedade conjugal
Inteligência da Lei nº 883/1949 Maternidade demonstrada
cabalmente Consideração, ainda, da sócio-afetividade
Pedidos procedentes Mantença, entretanto, do nome do
pai biológico das autoras, nos assentos registrários delas -
Recurso provido, com observação.
Ação: retificação de registro.
Argumentos das autoras: em síntese, Edna Helena de
Toledo Arruda e Maria Cristina de Toledo Pardinho afirmaram
serem filhas biológicas de Jeanete Linhares dos Santos Takayama,
nascidas, respectivamente, em 22 de novembro de 1968 e 09 de
junho de 1966.
Todavia, o nome da genitora foi suprimido dos registros
de nascimento de ambas, após o pai biológico ter realizado a adoção
unilateral delas, em 17.11.1969, com a expressa concordância da mãe,
com quem ele mantinha um relacionamento concubinário.
Asseveraram, ainda, que continuaram a residir com a
genitora, sem qualquer auxílio do pai. Posteriormente e com a
morte dele, em decorrência de situações que exigiam a apresentação
de documentos pessoais, as demandantes vieram a saber que o
nome da mãe havia sido suprimido de seus registros, o que lhes
causou inúmeros embaraços, por conta de comentários pejorativos,
além de problemas para regularização cadastral junto ao INSS e
recebimento de benefícios.
Assim, postularam a regularização dos registros de
nascimento e de casamento das autoras, a fim de que passe a
constar o nome da mãe.
Sentença (fls. 67/68): indeferiu a inicial, por ausência de
interesse de agir.
Recurso (fls. 72/92): almejam a reforma da sentença, com
o acolhimento da pretensão, repisando, em suma, o quanto
afirmado na inicial.
Regularmente processado, nesta instância manifestou-se
a digna Procuradoria Geral de Justiça pelo provimento (fls. 105/108).
É o relatório, ao qual se acresce o da sentença.
Pese o considerado pelo egrégio juízo, tem-se que o
recurso comporta provimento.
Como é cediço, o interesse de agir pode ser visualizado
sobre três aspectos, a saber: necessidade, utilidade e adequação.
Para José Roberto dos Santos Bedaque:
“O interesse de agir constitui expediente destinado a
evitar processos injustificados, permitindo a verificação da utilidade
social da iniciativa judicial, só admissível se apta a contribuir de
forma real para a efetivação do direito e a pacificação social. É
requisito legal para propositura da ação (CPC, art. 3º)...”.
1
Prossegue o autor:
“Tem interesse processual aquele que deduz perante o
juiz de direito subjetivo ou potestativo, individual ou coletivo, cuja
satisfação dependa daquela modalidade de tutela jurisdicional por
ele pleiteada. A utilidade da tutela jurisdicional para a solução da
controvérsia revela a existência de interesse, situação a ser aferida
objetivamente, mediante a verificação de determinado fato que faz
nascer a necessidade de tutela jurisdicional, que deverá ser
adequada à eliminação da crise de direito material.
A falta de interesse decorre da não-correspondência
entre o fato narrado e a tutela pleiteada, que pode ser desnecessária
ou inadequada. Será inútil o prosseguimento do processo se a
situação descrita na inicial não apontar comportamento de alguém
contrário ao que determina o direito material, nem fato apto a
modificar situação jurídica”.
2
Destarte, não se pode dizer que as autoras não tenham
1
 - Efetividade do processo e técnica processual São Paulo Malheiros 2006 p. 293/294. As expressões em itálico são do voto.
2
 - Idem, p. 294/295.
interesse processual, pois somente com uma decisão judicial
poderão elas eventualmente alcançar o desate de sua pretensão,
além do que, dos elementos colacionados, não emerge qualquer
dúvida acerca da maternidade, o que será melhor explicitado a
seguir, donde se conclui pela adequação da via eleita e consequente
desnecessidade de ajuizamento de ação visando ao reconhecimento
do vínculo materno.
Assim, fica afastada a extinção do processo e, diante dos
elementos já colhidos, é possível o julgamento do mérito da lide,
consoante os exatos termos do artigo 515, § 3º, do Código de
Processo Civil.
De início, não é demais lembrar que o registro público
deve revestir-se de certeza e segurança, retratando a verdade real e
evitando-se erros, daí o interesse público a nortear a sua existência e
preservação.
Conforme a lição de Washington de Barros Monteiro
3
:
“Registro é o conjunto de atos autênticos tendentes a
ministrar prova segura e certa do estado das pessoas. Ele fornece
meios probatórios fidedignos, cuja base primordial descansa na
publicidade, que lhe é imanente. Essa publicidade de que se
reveste o registro tem função específica: provar a situação jurídica
do registrado e torná-la conhecida de terceiros.
...
O registro civil, relativo à pessoa natural e que ora nos
interessa, destina-se à fixação indelével dos principais fatos da vida
3
 Curso de Direito Civil Parte Geral vol. I ed. Saraiva 39ª ed. atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto -São Paulo p. 81
separação e do divórcio. Sua existência e funcionamento
interessam de perto à nação, ao próprio registrado e a terceiros que
com ele mantenham relações.
...
Efetivamente, como dizem NICOLA e FRANCESCO
STOLFI, no registro se pode encontrar a história civil da pessoa,
por assim dizer, a biografia jurídica de cada cidadão”.
No caso, segundo a narrativa da inicial, as demandantes
Maria Cristina de Toledo Pardinho e Edna Helena de Toledo
Arruda nasceram, respectivamente, em 22 de novembro de 1968 e 09
de junho de 1966, na Maternidade Bom Jesus, em Tremembé/SP,
filhas de Jeanete Linhares dos Santos, solteira à época (fls. 37/38).
O pai biológico, Milton Toledo, que era casado quando
do nascimento das filhas, resolveu adotá-las, em 17.11.1969, a fim de
que elas tivessem o seu nome, nos registros de nascimento (fls.
51/52).
Contudo, tal fato, acarretou a exclusão do nome da
genitora de tais assentos, muito embora tenha ela mantido a tutela
das menores (fls. 54).
Ora, a partir da entrada em vigor da atual Constituição da
República, não mais se concebe situação como a vivenciada pelas
demandantes.
O fato de o pai das autoras ter procedido à adoção de
ambas, com o intuito de amenizar as consequências de um
relacionamento extramatrimonial, incluindo seu nome no registro
de nascimento delas, acabou por ser prejudicial a elas próprias, já
que o nome da mãe foi suprimido dos seus assentos registrários.
De se referir que, na época em que realizada a adoção, o
reconhecimento de filhos havidos fora do casamento era assaz
dificultada, sendo certo que a Lei nº 883/1949 estabeleceu como
pressuposto essencial a dissolução da sociedade conjugal (pelo
desquite, morte de um dos cônjuges ou pela anulação do
matrimônio).
A esse respeito, valioso o magistério de Caio Mário da
Silva Pereira
4
:
“Somente depois de dissolvida a sociedade conjugal
nascia o direito do filho adulterino à aquisição de um status. Pelo
respeito às situações conjugais, pelo zelo na manutenção da paz
doméstica, pela prudência no admitir o debate em torno da quebra
do dever de fidelidade conjugal, erigido em primeiro e mais
profundo dos que a lei impõe aos cônjuges, o Legislador de 1949
cuidou de somente franquear a perfilhação do adulterino naquele
pressuposto”.
Com o advento da Constituição de 1988, o
reconhecimento de filhos havidos fora do casamento passou a ser
livre, atribuindo-se a eles os mesmos direitos daqueles nascidos das
4
Reconhecimento de Paternidade e Seus Efeitos 5ª ed., 3ª tiragem Rio de Janeiro Forense
1998 p. 79.
relações matrimoniais (cf. art. 227, § 6º).
Tornando ao caso, tem-se que a maternidade está
cabalmente demonstrada, seja pelas declarações firmadas pelas
autoras e por sua genitora (fls. 44/45 e 42/43), seja pelas declarações
subscritas pela Diretora-Presidente do Hospital Bom Jesus da Santa
Casa de Misericórdia de Tremembé (fls. 34/35) e pela VicePresidente do Instituto das Pequenas Missionárias de Maria
Imaculada, que se reporta ao livro de registro de cirurgias daquele
nosocômio (fls. 40).
Por conseguinte e como bem ressaltado pela douta
Procuradoria de Justiça, induvidosa a maternidade e inexistente
conflito de interesses, não se há exigir o ajuizamento de demanda
visando ao reconhecimento de tal vínculo.
Por outro lado e ainda que houvesse qualquer dúvida
quanto ao vínculo biológico, a sócio-afetividade restou demonstrada
à saciedade e, também por tal motivo, a pretensão deduzida pelas
autoras comporta acolhimento.
Desde logo ressalto que tal aspecto, ou seja, da sócioafetividade, não é novo e desde a década de 90 tem recebido a
consideração adequada dos pretórios.
Vale, para exame, a referência ao quanto segue.
No panorama em que encarado o direito anterior à
atualidade, a filiação era considerada, pela legislação e pelos
estudiosos, sob o enfoque biológico, vinculada ao laço de sangue
existente entre pai, mãe e filhos.
No sistema tradicionalmente considerado, tinha-se em
conta a paternidade como decorrente do matrimônio, consagrada a
máxima pater is est quem nuptiae demonstrant, como assinalado
por José Bernardo Ramos Boeira (1999, p. 41), disto resultando que
“(...) a filiação está dentro das conseqüências naturais que advém da
instituição do casamento. Isso porque, até o advento da
Constituição de 1988, a família, como instituição jurídica, somente
era considerada a matrimonializada”.
Por isso mesmo a presunção existente no CC de 1916,
quanto à paternidade, considerando seu art. 338, como pais, os
filhos nascidos 180 (cento e oitenta) dias, pelo menos, depois de
estabelecida a convivência conjugal (art. 339), além dos nascidos
dentro nos 300 (trezentos) dias subseqüentes à dissolução da
sociedade conjugal por morte, desquite, ou anulação.
Como corolário disso e sem que se desconsidere
logicamente a paternidade decorrente da adoção, em que a lei
procura imitar a natureza, suprindo, por meio de artifício jurídico,
aquilo que ela não possibilitou e que nenhuma consideração dá ao
liame biológico, assentando, conforme José Lamartine Corrêa de
Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz (1990, p. 38), “(...) sobre
dado psicológico e social”, aponta Luiz Edson Fachin (1995, p. 175,
n. 2.1.1), que “A dimensão jurídica da paternidade conduziu a
resultados inaceitáveis ao abrigo da presunção pater is est”,
prestando-se a referência a indicar a insuficiência do sistema
legislativo sempre considerado, em desprovido de relevo o aspecto
sócio psicológico sempre presente em relações conforme as
pertinentes àqueles que, segundo uma visão ampla, liberta e
democrática, em que e acima de tudo assume gritante importância a
circunstância da dignidade da pessoa humana, sejam considerados
afastado o preconceito legislativo - , como pais e filhos,
independente de uma ligação biológica.
Esse o caso, daqueles que são considerados, conforme o
dito popular, filhos de criação, em que, sem qualquer vinculação de
sangue, determinadas pessoas são havidas por aqueles que as
conhecem, como filhos de outras com quem não têm ligação com
tal natureza, em que e como escrito por José Carlos Teixeira Giorgis
(2008, p.77, n. 5.7.), que tanto honrou o Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, (de que se viu apartado mercê do compulsório e
discutidíssimo aposentamento fundado na idade, especialmente
para quem, como ele, tem espírito jovem e criador, emoldurado,
todavia, pela maturidade que a vida confere), importa, sim, “(...) a
visibilidade das relações, mostrando vínculo psicológico e social
entre o filho e o suposto pai, um momento permanente de
comportamento afetuoso recíproco, com tal densidade que torna
indiscutível a filiação e a paternidade”.
Em tal situação também se incluem aqueles que tenham
sido reconhecidos como filhos dos reconhecentes, sem que o sejam,
na denominada adoção à brasileira, condição que, como o anterior,
permite inferir-se a procedência e razão da assertiva de Fachin
(1995, p. 175, n. 2), com apoio em Michelle Perrot, no sentido de
que, “(...) a família se abre para configurar-se, ´num mundo duro,
um abrigo, uma proteção, um pouco de calor humano`, lar onde se
sobressaem a solidariedade, a fraternidade, os laços de afeto e o
amor”.
Assim e da mesma que a partir de 1988 uma nova
moldura foi imposta à família, traduzida, então, com significado
plural e a envolver tanto o ente resultante do matrimônio, como
aquele caracterizado pela união estável entre homem e a mulher,
além do representado por qualquer dos pais e seus ascendentes, a
proibição de qualquer designação depreciativa e preconceituosa
quanto à condição dos filhos implicou, de forma imperiosa, a
necessidade uma revisão da forma como olhados aqueles que,
independente do enquadramento no que a lei determina como
limites próprios à condição, se apresentem como pais (em sentido
amplo, i.e., a mãe e o pai) e filhos, especialmente quando se tem
conta o fato de que tal é a realidade existente, que, conforme Luiz
Edson Fachin, “(...) a definição da paternidade, máxime nas
reformas européias recentes, também leva em conta conceitos
reveladores de um parentesco sócio-afetivo, nomeadamente através
da posse de estado de filho”.
Com efeito, não se pode negar o que o dia a dia apresenta
a todos, dentro da rotina de exceções em que a vida se constitui,
afastando a própria possibilidade de se afirmar presente, em
circunstâncias de ordem variada, um único ponto de vista válido ou
a existência de único acerto sobre isto ou aquilo, principalmente na
situação a que se refere estas notas, em que, na referência de Fachin
(1995, p. 177, n. 2.1.2), “O liame genético (embora fundamental) por
si só pode não explicar a base real das relações paterno-filiais. Um
filho, escreveu o prof. João Baptista Villela, ´tem que ser mais
alguma coisa, ao invés de ser simplesmente filho`”.
Realmente e de acordo com o assentado pelo TJRGS, na
Ap.Cív. 7000085566697, rel. o Des. Luiz Felipe Brasil Santos, “A
relação jurídica de filiação se constrói também a partir de laços
afetivos e de solidariedade humana entre pessoas geneticamente
estranhas que estabelecem vínculos que em tudo se equiparam
àqueles existentes entre pais e filhos ligados por laços de sangue”,
acrescentando o Des. José Carlos Teixeira Giorgis: “Destarte, não
importa quem é o ´genitor`, mas quem é o ´pai`, aquele que dá
carinho, protege, abraça, conforta, ama”.
Surge, aqui, então, o aspecto novo sob a circunstância
de sua consideração doutrinária e também jurisprudencial, como se
passará a ver da sócio-afetividade.
Pese a existência, no direito brasileiro, como visto, de
pensamento legal orientado à biologização da paternidade, o fato é
que se tornou necessário considerá-la sob enfoque diverso e
orientado pelo princípio da sócio-afetividade, em que a inexistência
de ligação biológica é um simples dado e que não implica em
solução no sentido da impossibilidade de se afirmar o filho como
tal.
Efetivamente, aspectos outros existem e que servem a
indicar a existência de uma filiação em que a força do sentimento,
relação existente entre os pais e o filho, a maneira, enfim, como a
paternidade e a filiação se apresentam, reciprocamente, acabando,
inclusive, por superar o próprio vínculo decorrente do sangue,
quanto à forma como se apresenta e que acaba por representar, se
assim for possível considerar, um verdadeiro documento visual
sobre a paternidade, impondo a consideração a respeito dela, para
os efeitos que o direito possa regular.
O afeto, o respeito, a consideração que constroem uma
relação firmada numa verdadeira moldura de amor, servem, sem
qualquer dúvida, para formar o desenho suficiente à conclusão
manifestada por João Baptista Villela (1979, p. 409), de que “(...)
paternidade e maternidade não são geração, mas sim afetividade e
serviço”, em que a força do vínculo resultante acaba por manifestar
uma nova arquitetura da filiação, onde o alicerce deixa de ser o
elemento genético e passa a ter em conta a força do sentimento,
como forma de estabelecimento do vínculo paterno-filial, em um
verdadeiro processo de construção, se for permitida o uso de tal
figura, com vistas à aferição da paternidade, em seu sentido amplo.
A respeito do tema, bem pondera Silvana Maria
Carbonera (1998, p. 304), que, “O aspecto sócio-afetivo no
estabelecimento da filiação, baseado no comportamento das
pessoas que a integram, revela que talvez o aspecto aparentemente
mais incerto, o afeto, em muitos casos é o mais hábil para revelar
quem efetivamente são os pais. A incerteza presente na posse de
estado de filho questiona fortemente a certeza da tecnologia.
Ademais, a verdadeira paternidade decorre mais de amar e servir do
que de fornecer material genético”.
Adverte essa autora, ainda (loc. cit.): “(...) ao mesmo
tempo em que se torna possível conhecer a origem genética pela
tecnologia, o afeto também espaço e contornos jurídicos, revelando
os pais do coração. Como bem aduz João Baptista Villela, o aspecto
biológico cede espaço ao comportamento. A figura paterna [e a
materna também, acrescenta-se aqui] é reconhecida pelo amor,
desvelo e serviço com que se entrega ao bem da criança”.
Nota-se, portanto, que a forma como agem os envolvidos,
o tratamento dedicado àquele que, sem ser filho biológico é o filho
de amor, servem, sem qualquer questionamento, à definição da
paternidade sócio-afetiva, em que a posse da condição ostentada é
eficiente à afirmação sobre a filiação e paternidade.
Note-se, com Silvio de Macedo (1986, pp. 92/94, n. 4.38),
ser o amor, também, um valor jurídico e disto decorre, como é
óbvio, que a sua visualização, na relação envolvendo pais e aquele
que é tratado como filho, independente do liame consangüíneo,
serve a produzir efeitos no tocante à consideração sobre a efetiva
existência de relação paterno/filial entre tais pessoas.
Invocando novamente Silvana Maria Carbonera (1998, p.
305), “A verdade sócio-afetiva (...) aproxima-se do modelo de família
eudemonista, pautada que está no afeto, construído
quotidianamente e não determinado desde o início da relação,
revelando a valorização dos sujeitos. Desta forma, ´[...] a construção
de um novo sistema de filiação emerge como imperativa, posto que
a alteração da concepção jurídica da família conduz
necessariamente à mudança da ordenação jurídica da filiação`, e o
afeto, neste sentido, deve ocupar lugar de destaque”.
Importa considerar e admitir, assim e ainda que para
alguns possa ser difícil, que, sob o prisma sociológico, psicológico e
em especial ante o que a realidade diária apresenta, é necessário
identificar a família não mais sob conceito singular, impondo-se
encará-la sob enfoque plural, em que a limitação imposta pela
legislação pode e deve ser examinada sob prisma diverso do nela
proposto e segundo a verdade necessária à concepção do justo e
com atenção aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do
bem comum, nos expressos termos do art. 5º da LICC.
Anote-se que, segundo a redação do art. 1.593 do CC
vigente, “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de
consangüinidade ou outra origem”, no tocante a que em nas duas
Jornadas de Direito Civil realizadas pelo Centro de Estudos
Judiciários do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, nos anos de
2002 e 2004, coordenados cientificamente pelo Ministro Ruy Rosado
de Aguiar, foram aprovados os seguintes enunciados, quanto á
interpretação do referido dispositivo e que bem indicam o
reconhecimento sobre a necessidade de uma adequada
compreensão da regra legal referida:
103 Art. 1.593: o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras
espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção,
acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no
vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução
assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não
contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade sócioafetiva, fundada na posse do estado de filho.
(I JORNADA DE DIREITO CIVIL)
256 Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade
socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.
(III JORNADA DE DIREITO CIVIL).
Ainda que se tenha observado que essa“(...) interpretação
não alcança aqueles casos em que alguém pretende fazer uso da
convivência fática como causa para postular, judicialmente, o
estabelecimento da relação jurídica de paternidade”, pois, “A
aplicação normativa, nos litígios para desfazimento da
parentalidade, se ajusta aos casos em que já há reconhecimento de
paternidade levado a efeito por quem estava exercendo plenamente
todos os atributos que lhe são conferidos pela capacidade civil” e
“O que se preconiza é que, eventualmente, ainda que de alguma
mácula se revestisse o ato, o êxito da demanda não estaria,
necessariamente, assegurado, se demonstrada a posse de estado de
filho, que se apresenta por uma ´série de fatos, indicativos da
relação de filiação entre um indivíduo e a família a que pretende
ligar-se`
5
. Tais fatos são publicizados pelos clássicos atributos do
nome, trato e fama” (TJRGS, Ap.Civ. 70010807642, voto do Des.
Luiz Felipe Brasil Santos), importa, sim, é o exato papel que a
assertiva central inserida no acórdão contém, quanto ao relevo da
5
 ALMEIDA. Estevam de. Manual do Código Civil Brasileiro: direito de família. v. 6. Rio de
Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1925. p. 70.
sócio-afetividade em questões atinentes à filiação e paternidade.
Sensível a isso e compreendendo a finalidade exata de sua
existência e como verdadeiro laboratório da vida, têm os juízes
manifestado orientação que não se afasta do quanto até aqui
referido e será visto em seguida.
Já não se pode pretender, com em determinado
momento da história se desejou, sejam os juízes a simples boca da
lei, cabendo-lhes, muito ao contrário e no exercício de sua atividade,
examinar o que a lei indica ter sido querido pelo legislador e,
segundo o fato concreto e as circunstâncias a ele específicas,
verificar a solução que, conforme os limites possíveis e sempre
atentando para o que dispõe o art. 5º da LICC, possa ser a mais
adequada àquilo que lhes é submetido.
Para tanto, logicamente, acabam por ter ter em conta a
recomendação de Benjamin Nathan Cardozo (1978, pp. 117/118), de
que, “a lógica, o história, o costume, a utilidade e os standards
aceitos de comportamento correto são as forças que, separadamente
ou em combinação, impulsionam o progresso do direito”.
Oportuna a lembrança, neste passo, de Alexandre
Delfino de Amorim Lima, no jornal O Estado de São Paulo, de
15/04/1945, coluna Digressões Jurídicas, para quem, “Os Tribunais,
em seus arestos, não solucionam teses de Direito à maneira dos
jurisconsultos, encerrados na torre de marfim dos princípios
abstratos; mas decidem casos concretos, segmentos do drama
cotidiano da vida, caracteristicamente dissemelhantes em sua
infinita variedade. Ou, por outras palavras; os Tribunais lavram seus
Acórdãos sob a contínua prressão dos casos concretos”.
Outrossim e segundo J.A. Nogueira, na Gazeta
Judiciária, n. 298, p. 1, “A lei é feita para favorecer a vida e promover
a felicidade dos seres humanos. Não deve ser convertida em pura
mecânica verbal ou silogística. Um texto não pode ser puerilmente
colocado dentro de um sino ou campânula de vácuo para aí ser visto
como um pássaro agonizante. É uma cousa vida e destinada a viver
em comunhão com outras vidas. Em torno dele giram todas as
preocupações sociais, que o produziram para determinados fins
preocupações que devem estar presentes no espírito do aplicador da
Lei. Por isso o Juiz não uma consciência isolada, que deva
permanecer alheia aos grandes ideais e propósitos que encheram as
máximas determinações do legislador e acima de tudo um executor,
inteligente, a quem não se pode negar a loucura mesmo do
Cavaleiro Andantes que quer reparar e consertar o mundo, para que
floresça e viva sob a benéfica influência dos valores eternos, em face
dos quais tudo o mais é vão poeira e como tal pode e deve parecer”.
Assim e ao lado do conhecimento jurídico, necessitam os
magistrados agir com sensibilidade, sentimento, preocupação com
o resultado que sua decisão possa ter, tanto quanto aos dela
destinatários, quanto da contribuição a que possa constituir, seja no
tocante ao aprimoramento legislativo, seja no referente à “formação
e modificação da consciência [social] que interpreta”, na lição de
Benjamin Cardozo (1978, p. 18).
Disso não se tem arredado a jurisprudência,
reconhecendo a necessidade da consideração ao aspecto da sócioafetividade, quanto a questões pertinentes à paternidade, “(...)
verificando as circunstâncias que envolvem o registro, se existiu, ou
não, a relação de afetividade contínua, duradoura, exteriorizada
entre as partes (...)”, na advertência do TJRGS (Ap. 70017589037, rel.
Des. Luiz Ari Azambuja Ramos).
Assim e em processo no qual se objetiva ver negada a
paternidade, observou o mesmo TJRGS: “A manutenção da
paternidade registral, não biológica, mesmo quando firmada de
forma voluntária, só se justifica quando existente relação de
socioafetividade entre as partes. Ausente, no caso concreto,
qualquer vínculo socioafetivo entre pai e filho, o registro de
nascimento do menor deve ser modificado, até mesmo para que
possa buscar sua verdadeira filiação. RECURSO PROVIDO”
(Apelação Cível Nº 70017511288, Oitava Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda, Julgado em
07/12/2006)
Sem relegar importância à sócio-afetividade, atentou a
aludida Corte, abordando a natureza relativa do assento de
nascimento, o seguinte: “Caso em que o processo deve ser anulado
e remetido de volta ao primeiro grau. A ação versa sobre direito
indisponível. E a ré, menor, citada, não apresentou defesa. O juízo
deveria ter-lhe nomeado curador especial antes de prolatar a
sentença. Por isso, o processo deve ser anulado. Descabe proferir
julgamento antecipado da lide quando a ação versa sobre direito de
estado indisponível. É preciso investigar a existência de paternidade
socioafetiva. O registro da paternidade não permite presumir a
existência de socioafetividade. Mas mesmo que o fizesse, essa
presunção seria relativa e não absoluta, pelo que necessária a
instrução probatória. SENTENÇA DESCONSTITUÍDA”
(Apelação Cível Nº 70015137169, Oitava Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 26/10/2006).
Afirmando constituir-se o reconhecimento espontâneo de
quem sabe não ser o pai biológico uma verdadeira adoção e
mencionando o aspecto sócio-afetivo, ainda o TJRGS conclui o
seguinte: “O reconhecimento espontâneo de paternidade por quem
sabe não ser o pai biológico, caracteriza verdadeira adoção. Para
anulação do registro civil, deve ser demonstrado um dos vícios do
ato jurídico ou, ainda mesmo, a ausência da relação de
socioafetividade. Registro mantido no caso concreto. APELO NÃO
PROVIDO”. (Apelação Cível Nº 70016383630, Oitava Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: Claudir Fidelis Faccenda,
Julgado em 28/09/2006)
Levando em conta o valor que a sócio-afetividade tem
quando se objetiva a desconstituição do registro de nascimento,
firmou um outro julgado, ainda do TJRGS, o seguinte: “A moderna
concepção de paternidade se enraíza no afeto entre o filho e quem o
ampara com o invólucro do carinho e do amor, afastando a
obrigação do vínculo biológico. É genitor quem contribui com a
carga genética, mas é pai quem cria e protege, dedicando seu
sentimento a quem registra espontaneamente e cuida durante vários
anos. O desfazimento da anotação do nascimento, calcado em
interesses apenas patrimoniais, compromete o caráter ético que
deve presidir a demanda de filiação. APELAÇÃO DESPROVIDA,
VENCIDA A RELATORA, QUE DAVA PROVIMENTO
PARCIAL” (Apelação Cível Nº 70009571142, Sétima Câmara Cível,
Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Carlos Teixeira Giorgis,
Julgado em 01/12/2004).
Apreciando embargos infringentes (Nº 70004747143, rel.
Des. Rui Portanova) relativos a pleito rescisório fundado em erro de
fato e em que afirmado o estado de filho no tocante a determinada
pessoa, a Corte Gaúcha concluiu, ainda que por maioria de votos, o
quanto segue: “Não se verifica erro de fato quando a prova produzida
foi devidamente analisada pelo magistrado. Sentença que reconhece
estado de filha que se deu “de forma pública e respeitosa”, onde
ela “era carinhosamente tratada pelo mesmo como filha”. Relação
de afeto que ao longo do tempo foi fincando raízes a ponto de
criar uma verdade social que independe da verdade biológica.
Reconhecida - ausente qualquer dúvida - a socioafetividade, a decisão
rescindenda não “incidiu em erro de fato por ignorar o laudo pericial”.
Ação rescisória que se embasa em erro de fato pois o resultado da
perícia que apontou que os embargantes não são os avós biológicos da
embargada. Novo DNA que concluiu que nenhuma conclusão
verdadeira a respeito da paternidade dos autores em relação ao
investigado se pode realmente tirar do laudo” .
Noutro precedente, objetivando-se a investigação de
paternidade com anulação de registro e pretendendo-se a prévia
realização de prova pericial, suspensa realização de audiência,
concluiu a turma julgadora: “Ainda que o exame pericial seja
importante para o descobrimento da filiação biológica, não se pode
perder de vista que o julgador não está adstrito apenas ao exame
genético. A ação envolve possível modificação do registro civil, caso
em que a prova não pericial se faz necessária também para a
investigação de possível paternidade socioafetiva”. NEGADO
SEGUIMENTO. (Agravo de Instrumento Nº 70007941727, Oitava
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui Portanova,
Julgado em 30/12/2003).
Coerente com a linha até aqui apresentada, decidiu o
mesmo Tribunal, ademais: “No que tange à filiação, para que uma
situação de fato seja considerada como realidade social
(socioafetividade), é necessário que esteja efetivamente consolidada.
A posse do estado de filho liga-se à finalidade de trazer para o
mundo jurídico uma verdade social. Diante do caso concreto,
restará ao juiz o mister de julgar a ocorrência ou não de posse de
estado, revelando quem efetivamente são os pais. A apelada fez
questão de excluir o apelante de sua herança. A condição de 'filho
de criação' não gera qualquer efeito patrimonial, nem viabilidade de
reconhecimento de adoção de fato. APELO DESPROVIDO”
(Apelação Cível Nº 70007016710, Oitava Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Rui Portanova, Julgado em 13/11/2003).
Ressalvou outro julgamento, ainda e em certo instante da
ementa, sobre a prevalência da sócio-afetividade em relação ao
eventual objetivo patrimonial que se possa pretender judicialmente:
“Reconhecida a filiação socioafetiva, a investigação de paternidade
procedente não desconstitui o registro paternal, pois a prevalência
da socioafetividade faz com que o conhecimento da paternidade
biológica não gere seqüela patrimonial. Afastada a mercantilização
do afeto. Verba sucumbencial redimensionada. APELO
PARCIALMENTE PROVIDO. POR MAIORIA” (Apelação Cível
Nº 70004510483, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,
Relator: Rui Portanova, Julgado em 31/10/2002).
Consagrando, por fim, a necessidade de ser considerada a
sócio-afetividade pelos Tribunais, afirmou o Superior Tribunal de
Justiça, em julgado (Resp 878.941-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi)
que merece relevo e atenção, o seguinte: “O reconhecimento de
paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo
sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é
fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade
consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva
é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito.
Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil. - O
STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o
reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há
dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou
nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho
e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não
deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de
forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio,
respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente
sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica. Recurso
conhecido e provido”.
Do quanto exposto e que converge à necessidade do
reconhecimento sobre a importância que não se pode negar à sócioafetividade em relação à relação paterno-filial, percebe-se de forma
evidente e ainda que sem que se teçam considerações outras e
também cabíveis no assunto não no tempo disponível, que tanto a
doutrina, quanto a jurisprudência, buscando alcançar os fins sociais
a que a lei se destina e as exigências do bem comum, têm tratado a
sócio-afetividade com o relevo que lhe cabe dar, principalmente
quando se trata de examinar os aspectos próprios á paternidade e as
consequências que dela podem resultar.
Considerando o quanto tem afirmado a Prof. Tânia da
Silva Pereira, na cuidadosa pesquisa que realiza acerca do cuidado
como valor jurídico e à importância que ele tem para o Direito de
Família, pode-se considerar como nele inserida a própria sócioafetividade, onde envolvidos a proteção, a defesa, o socorro no início
deste tópico anunciadas e que existem numa verdadeira ligação
entre pais e filhos e, que, nada mais representam, que o exercício do
amor, afeto, carinho ou outra denominação que se de a sentimento
com tal feição e cuja denominação, ainda que em poucas palavras,
acaba por representar algo com conteúdo dezena de vezes maior e
de que derivam múltiplas consequências jurídicas, que não podem
ser negadas pelo Direito, aspecto em os doutrinadores e os
pretórios, como fica evidente, também têm agido com o cuidado
que lhes cabe, na missão de fazer com que o a interpretação jurídica
ocorra segundo o que a sociedade espera.
Destarte, seja porque demonstrado o vínculo biológico
entre as demandantes e sua genitora, seja porque também
comprovada a sócio-afetividade, de rigor o acolhimento da
pretensão das autoras, ressalvando-se que deve ser mantido o nome
do pai biológico, nos assentos registrários das demandantes,
considerando-se, inclusive, o princípio da dignidade da pessoa
humana, erigido à categoria de fundamento da República (CF, art.
1º, III).
Nas sábias palavras de Daniel Sarmento
6
, ao tratar dessa
mesma dignidade,
“A ótica que prevalece nesta matéria no constitucionalismo
contemporâneo é a do personalismo, que busca uma solução de
compromisso entre as concepções individualista e coletivista. O ser
humano é considerado um valor em si mesmo superior ao Estado e
a qualquer coletividade à qual se integre. Mas, de outra banda, o
homem que se tem em vista é um ser real e palpável, histórica e
geograficamente situado, que partilha valores e tradições com seus
semelhantes e que tem necessidades reais que devem ser atendidas.
É o homem que não apenas vive, mas convive”.
Importante, ainda, referir o magistério de Marie-Thèrése
Meulders-Klein
7
:
“Entre o indivíduo solitário (Marx, La question juive) e o Estado,
irmãos inimigos, o respeito à pessoa, única em sua dignidade de
homem, mas solidária da comunidade (E. Mounier e as filosofias
6 A Ponderação de Interesses na Constituição Federal 1ª ed., 2ª tiragem Rio de Janeiro Lúmen
Juris 2002 p. 69
7
In Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito org. André-Jean Arnaud (et. al.)
2ª ed. - trad. Vicente de Paulo Barretto (direção) Rio de Janeiro Renovar - 1999 p. 585.
da pessoa), valor frágil e local de mediação, resta talvez o único
princípio de coerência possível de uma democracia humanista, que
tenha alcance universal”.
De se lembrar, ainda e como enfatizado pelo mesmo
Daniel Sarmento
8
, que,
“[...] o princípio da dignidade da pessoa humana não representa
apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um
norte para sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de
se abster de praticar atos que atentem contra a dignidade humana,
como também o de promover esta dignidade através de condutas
ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em
seu território. O homem tem a sua dignidade aviltada não apenas
quando se vê privado de alguma das suas liberdades fundamentais,
como também não tem acesso à alimentação, educação básica,
saúde, moradia etc”.
Vai além o ilustre autor
9
, comentando:
“No Direito brasileiro, o princípio da dignidade da pessoa humana,
em que pese o seu elevado grau de indeterminação, constitui
também critério para integração da ordem constitucional,
prestando-se para reconhecimento de direitos fundamentais
atípicos. Neste sentido, pretensões cuja concretização se afigure
essencial à vida humana afirmam-se como direitos fundamentais,
ainda que não encontrem previsão explícita no texto
constitucional”.
Portanto, fica provido o recurso das autoras, a fim de se
julgar procedentes os pedidos formulados em fls. 16/17, expedindose o necessário, observando-se a necessidade de se manter o nome
8
 - Op. cit. , p. 71.
9
 - Idem, p. 73.
do pai biológico das autoras nos assentos registrários.
Essas as razões pelas quais se entende ser possível
acolher o recurso interposto, manifestando-se aqui o quanto se tem
como necessário e suficiente à solução da causa, dentro da moldura
em que apresentada e segundo o espectro da lide e legislação
incidente na espécie, sem ensejo a disposição diversa e conducente
à outra conclusão, inclusive no tocante a eventual pré-
questionamento de questão federal, anotando-se, por fim, haver-se
decidido a matéria consoante o que a turma julgadora teve como
preciso a tanto na formação de sua convicção, sem ensejo a que se
afirme sobre eventual desconsideração ao que quer que seja no
âmbito do debate travado entre os litigantes.
Ante o exposto, ao recurso é dado provimento, nos termos
enunciados, com observação.
A.C.Mathias Coltro
Relator

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